quarta-feira, 16 de novembro de 2011

sem título 1






Os sapatos debaixo das calças

Debaixo das camisas me olham
Não ousam fazer perguntas
Olhos miúdos perscrutam tudo
Solilóquio sujeito tagarelante
Silencioso escuta tudo
E sabe que na geografia
Não existe universo que o circunscreva
Anatomia nenhuma de biologia nenhuma dirá
Pós gota de pós mortem
Nada
Nadica de nada encontra lugar
Sempre esse rame-rame
É porque eu sou só um grão
Flash rápido
Provavelmente não conseguirei dizer nada que ficará
Além
Que alguém rezasse por minha alma
Corpo cansado
Maltrato
Ato contínuo
De non sense
Você sabe
Que eu nada sei


 

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Uma revisão para além da ortografia





 







Eu gosto que você corrija minhas vírgulas
Mas você quer sempre corrigir mais
Vai sempre um pouco mais
Vai nos meus pontos
Calcanhares de Aquiles
Tremas mal postas
Ignorância de reforma ortográfica
Você senhora absoluta da revisão
Dita além de minha entonação
Minhas palavras
Tantas delas
Que se derramam
Letra a letra
Imagem a imagem
Som a som
Fragmento a fragmento
Daquilo que não sai
E que me incrusta
Como ostra
Como pérola
Como porco
Jogá-la-ei alhures
Para que aquele que não tem paladar
Nem pontuação
Engula
Sem tempero
Sem parada
Sem virgula nem ponto
Suas idiossincrasias
De mulher
Revisora caprichosa
De seu modo próprio
De ler a vida
Maldita hora que eu homem
Submeti minha escrita
Ao seu sabor




sábado, 16 de julho de 2011

Depois da morte do pai









 Papai, me diz que você não vai morrer nunca
Me diz que você será sempre meu herói imortal
Me diga que mesmo que você e mamãe não se acertem
Ainda que um dia ela te mande embora ou você precise ir
Que você não me abandonará por causa de vocês
Me diga que continuarei sendo seu filho
Mesmo que o mundo vire de cabeça para baixo
Mesmo que os hormônios dela queiram te devorar
Que você não se deixará ser devorado por uma mulher
Mesmo que ela seja minha mãe
Me diga que o seu lugar é um lugar intocável
E que nada neste mundo, nem mesmo a terra vai comê-lo por inteiro
Papai continue sendo meu herói imortal
Me diga que você habita entre os heróis
Ainda que estes heróis sejam mancos, barrigudos ou carecas
Mesmo que me digam que você é feio, tosco ou mal acabado
Ainda que me digam que papai Noel e o coelhinho da páscoa não existem
Mesmo que os outros digam que não
Ainda assim me diga
Mesmo que seja somente para que eu possa acreditar
Que você continuará mantendo um colo pra mim


 
 
 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Quando não se sabe o nome











As frases de efeito levarão aonde?


A publicidade?


Lacan citando Lutero diz:


Sois o dejeto que cai no mundo pelo ânus do diabo


Fio de navalha


Desconstrução contínua


Vi não ouvi


Ouvi não disse


Enxerguei não falei


Diarréia


De tubo assustado


Mundo de susto


Solução


Vários soluços


Gazes


Flatulência que malandro chama de covardia: - peidou! (sic)


Beagle pula da cama


Café sem bom dia


Rescisão contratual


Dúvidas de cascas de ovos


No rótulo do cigarro tem um aviso de que ele causa morte


Uma menina aturdida se assusta com o anúncio


Adiverti-a


Pela autopsia passam todos!














 
 

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Pai de aluguel ou uma piada sobre a mãe ou a ingenuidade cruel das criancinhas












 

Numa agência de pai de aluguel
Ficará na porta o anúncio:
Homens disponíveis para desempenho de função paterna
Treinados, capacitados, aptos, cordiais serviçais
Bem longe do pai claudicante de Lacan
Eles dão banho
Papinha
Põe pra dormir
Brincam quando necessário
Carregam
Põe pra arrotar
Trocam fralda
Põe a roupa
Avaliam a temperatura
Deitam-se no chão para fazer macaquices
Comem a mamãe se necessário
Não, não, não!
Tava indo tão bem porra!
De onde tirou a idéia de comer a mamãe?
Quem te falou que mamãe trepa?
Que insanidade de onde tirou isto?
Ou até hoje ninguém te explicou
Que a única vez que a minha mãe trepou
Foi para me conceber? Seu filho da puta!
Fudeu com minha agência, fudeu com minha idéia
Que coisa de tocar na sexualidade da mãe
Você nunca ouviu falar isto?
Isto é intocável, isto é sagrado, caralho!
O que você acha que quer dizer ‘imaculada’?
Imaculada é sem mácula
Sem mancha
Sem sexo!
Não contrato mais seu serviço pra agenciar meu Nome-do-Pai
Teu porra, você não deve ter mãe pra pensar um negócio deste
O cara vai comer a mamãe, aonde já se viu isso!

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O ordenamento jurídico sobre provimento de alimentos ou 'para fazer uma omelete' ou 'será que eu posso realmente dizer o que penso?'








No quinto dia útil
A loba mostrará os dentes
Inquisidora perguntará sobre recursos
Em uma espécie de prestação de contas de convênio
Quererá saber sobre todas as rubricas
As agruras e quimeras que não foram engolidas
Voltarão todas
Regurgitar-se-á cada mal estar
Eles serão convertidos em centavos de ira
Indeglutível raiva
Que as mulheres guardam quando querem cutucar
O órgão mais sensível do homem
Escroto de ovos
Pour fait les omelets Il faut casseux les oeuves
Para fazer uma omelete é preciso quebrar os ovos
Vai comendo Raimundo!
O ingrediente principal da omelete
É seu
Chora primeiro
Ri depois




 
 
 
 

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Papo de buteco








E o homem só começou a falar de suas mazelas
Clamou das ranhetas que a vida lhe fez passar
As rugas no entorno de seus olhos
Mostravam que ele não mentia
Nem mesmo exagerava
Contou dos submundos que foi
Falou das drogas que o consumiram
Reclamou das contas
Queixou-se dos parcos recursos
Disse o que faria se ganhasse um milhão
Mas voltou ao mundo real e continuou o relato de suas expiações
Dissecou alguns detalhes mórbidos das noites insones
Lembrou do cheiro do enxofre
Por um momento apenas seu olho brilhou
Foi quando falou que viu a ex-mulher
Ele a vira há dois dias atrás
Depois de sete anos
Fora a primeira vez que a vira
Tentou pensar na sorte ou no azar
Fingiu que não a viu
Mas as costas, os cabelos e os pés não o deixavam se enganar
Olhou para trás para conferir
O que ela faria ali?
Teria provocado um acaso para vê-lo?
Ele não precisava perguntar para si mesmo se ainda a amava
Ele sabia a resposta
A dúvida cruel
Era o porque dela ali
Por que ela teria vindo de tão longe para buscar um pão?
É claro que ele sentia falta dela
Ele já havia falado da solidão
E de como ela é sem remédio
Seu imaginário voou longe tentando achar aquela resposta
Ele saiu triste com suas rugas
E em seus passos magros
Continuou caminhando no fio de sua solidão
Em meio a suas tormentas
Sorvia goles
Buscando companhia, alívio, quietude
Tagarelava etílico
Suas ruminações de homem ordinário
E as dores que lhe carcomiam por dentro


p.s. seguramente ele não conhecia a letra daquela música que fala
que é desconcertante rever o grande amor












terça-feira, 19 de abril de 2011

O pouco de silêncio da noite






 




A televisão falará a noite inteira sem que eu a escute
Contará todas as fanfarronices que a mídia é capaz de produzir
Continuarei sozinho não escutando tudo aquilo
Pois por um instante durmo
Eventualmente contudo uma insônia maldosa me cutuca pelas madrugadas
Ela fica me perguntando sobre o que eu vou fazer
Ela é persistente
Pergunta sem dó
Parece propaganda; - o que queres? O que queres?
Eu não sei o que dizer a ela
Apenas acompanho o movimento dos filmes nacionais repetidos
Que migram para os filmes estadunidenses escaldados
Depois surgem desenhos
Estranho, desenhos a esta hora da madrugada não?
Devem ser os pacotes que eles compram e não sabem aonde enfiam
Logo depois os telecursos para os que tropeçaram na escola
Depois jornal rural
Jornal de rede local
Jornal de rede nacional
E a vida amanhece alheia a minha insônia
E não me pergunta nada
A não ser apenas a hora que vou acordar
Os pardais e os movimentos a rua me avisam
Que mesmo que a paz não tenha me chegado naquela noite
Dia se avizinha
O despertador do telefone com valsa me avisa
Calça tua armadura
Vai-te
Uma nova batalha te espera
Tira tuas botas da lama
Veste sua farda de todo dia
Tem dia que a noite é foda











segunda-feira, 11 de abril de 2011

Fala de soldado do tráfico (dois discursos sobre uma só questão)










Oh Zé, aquele cara falou   (escuta)
Que o cara de óculos tá te escoltando (tem gente de olho em você)
Falou que é pra ocê piá lá na fita   (querendo que vá aonde deixou pendências)
Porque senão ele vai querer resolver aquela treta  (para resolvê-las)
É enfumaçando ocê! (para seu próprio bem)
Leva a mal não         (me desculpe)
Mas esse negócio de ficar pagando de doido (mas sua negligência)
Não vai resolver a parada   (não solucionará a questão)
Tem que botar a cara Zé!   (honre seus compromissos)
Negócio de pilantragem com bandido cola não 
(sua omissão te custará caro)
Coração de bandido bate é no pé (seus credores não tem piedade de ti)
Bandido tem é sangue no fundo dos olho (e levarão tudo até as últimas conseqüências)
Leva a mal não Zé  (me escuta)
Pra mim não dá nada não (não tenho nada com isto)
Eu sou colado é no patrão (meus amigos me protegerão)
Num fico na mão do calango não (tenho padrinhos)
Com nóis é só pentada (e posso levar as coisas ao extremo)
Oh Zé cola com os alemão não (não se aproxime dos meus desafetos)
Ocê deixou o patrão aperreado (você incomodou ao meu superior)
Ele falou comigo que tá bolado com ocê (ele ressente de seus atos)
Oh Zé  (escuta)
Faz logo sua correria (resolva sua pendência)
Porque é muita treta (a fila anda)
Tem um microondas lá na quebrada (a vida é frágil)
Que o patrão usa pra resolver umas questão (o tempo urge)
Eu acho que ocê não vai querer conhecer não (aqui se faz, aqui se paga)
E eu já te falei (escuta)
Dentro da favela a lei é outra (o mundo é muito desigual)
Quem manda lá não é os homi não (e quando a justiça não resolve tudo)
Quem manda lá é nóis  (alguém há de resolver)
Oh Zé (escuta)
Aquele cara falou que cuspiu no chão (existe uma demanda contra você)
É procê piar lá antes que seque (é melhor que a solucione)
Oh Zé (escuta)
O mundão (a vida é dura)
É cão (mas é aqui que se resolve)
Já é? (entendeste?)

terça-feira, 5 de abril de 2011

Dicionário para dúvidas em geral












Para corrigir alguma coisa da ortografa bati palavras em um Microsoft Word
Para fazer uma pesquisa sobre tudo bati no Google
Mas aonde faço a busca ‘como ser um homem perfeito’?
Aonde digito dicas para ‘como ser pai’?
Haverá algo sobre ‘o bom chefe’? Ou ‘como manter um casamento’?
Há algo sobre o déspota esclarecido?
Alguém saberá me responder isto?
Aonde vou encontrar as respostas para minhas questões sem resposta?
Algum beócio de envergadura dirá: faça assim, faça assado!
Mas ainda existe também o bem intencionado que me dirá sempre: não faça nada disto!
É risível, é ridículo, é oco
É só um buraco
A minha honestidade tacanha
Que me manda para todos os furos do mundo me obriga a dizer:
Sua receita não se aplica
Meus amigos com suas idéias mirabolantes
Perecem no mesmo limbo de dúvidas
Porque se por um lado todos tem tantas respostas geniais para me dar acerca dos meus problemas
Cada qual padece igualmente de interrogações tão estomacais quanto as minhas
Você magnânimo olha minhas questões
E diz: ora, ora, ora!
Você sapiente me recomenda todos os princípios daquilo que não aplica
Você não passa de um grande filho da puta
Que me alerta para fazer o que você diz
Mas não fazer o que você faz





segunda-feira, 4 de abril de 2011

Notas sobre homens sós ou o porque do casamento feliz





Te amo porque você me deixa
Me deixa vagar pelos bares e pelas noites
Me deixa desfrutar o Zoológico das espécies
Botânica de alquimista
Na noite escura surgem todos os ângulos
É possível ver todos os alcoólatras
Todos os toxicômanos, os canabinomanos,
Os cocaínomanos, os noiados
Vespertinos, vesperatos, desesperados, todos
Todos tão solitários
Estes solitários tratam malestares
Tanto de multidão quanto de solidão
Com copo mudo que não pede nada
Com nota encardida de catarro
Com cachimbo fedorento que propaga paranóia
Com insônia inimiga de sol
Remédios com efeitos colaterais
Suspeita de que alguém tudo vê
Será Deus? Ou a polícia? Será minha mulher?
Será meu chefe? Será meu supereu?
Será que o papai imagina isso tudo de mim?
Será que o pecado pode ficar sem confissão?
Há quem diga que não
De qualquer forma era possível amá-la
Porque ela o deixava chafurdar na sua solidão
Era possível odiá-la pelo mesmo motivo
Ele só sabia que quando andava pelas noites e bares
Ganhava a sorte de poder observar tudo
Ganhava igualmente o azar de provar um de cada
Escutar lorotas monotonicas insuportáveis
De novo delírios de ciúmes
De novo papo de futebol
Uma mulher em casa brigaria por outros motivos
Mazelas de ter que conviver todo dia
Canseira de casal
Neura
Moléstia
Molestação
Não me venha novamente com seu rosário
Não me venha novamente com suas lágrimas
Não me venha a uma hora desta discutir a relação
Enquanto encontra coito, a carne é só tesão
Gemidos, sussuros, gritos e silêncio: Pos coitum animal triste
Depois do corpo inerte um chicote sadomasoquista de alma, pergunta: que queres?
Nada! Respondo
Silencioso penso: deve ser por isto que os homens freqüentam os bares
Lá existe só Happy hour
Em casa uma mulher vestida de esfinge não se cala: decifra-me ou eu te devoro!


 
 
 

quinta-feira, 24 de março de 2011

O tempo era














As fitas do senhor do Bonfim não se romperam ainda



Não sabia se haveria sorte ou azar


Quisera cortar os pulsos


Para que junto com as fitas fossem os afetos


O horóscopo também era sempre muito amigável


Por isto evitava lê-lo


Apenas o espelho não mentia


Porque só ali havia olhos nos olhos


Todos os oráculos


Apenas especulavam


Bolsa de jogos


Purrinha


Apurrinhação


O tempo ampulheta impassível ria


Pequeno homem


Como sofre tão grande com tanto nada?


Búzios, números e pais de santo


Dizem que o tempo será


A verdade na verdade


Habita no passo que está por vir


E não no seu desejo


De escutar palavra bem dita


A verdade qual previsão dirá?


O tempo era, já disse James


Por que você não escuta isso?


Por que sofre tanto com este tempo que já não é mais?


A verdade está no por vir


Quando as fitas rasgarem


Não se preocupe com os presságios


É apenas um pano que se esgarçou

segunda-feira, 14 de março de 2011

Entre dois Rodrigues

cadeira de Sergio Rodrigues




Uma mulher disse que mulheres casadas tem amantes
Falou de coitos ocultos às segundas-feiras
Os motéis lotam no horário do almoço
As mulheres casadas tem amantes! Meu Deus!
Nunca imaginou isto
Fazem-no para manter o casamento!
Nelson ruborizado treme na cova
Conversas de não sei quem’s
Os ossos de Nelson reviram no sepulcro
Só as cadeiras do sobrinho poderiam salvar a honra da família
Os móveis não eram despudorados
Os móveis tinham classe
Só o tio não
(para poder pensar e escrever aquelas coisas)
Ele deveria tê-la amarrado na cama
Talvez assim não ficasse com dúvidas
Ele achava que devia mudar tudo
De chave, de caminho e de vagina
Talvez assim achasse um lugar só de cafuné
Outro diz
Quando a mulher recusa o homem
É porque existe outrem
Meu Deus, meu Deus!
Por que será que Nelson treme?
Porra Nelson, para de tremer foi você que disse
Que ela era bonitinha mas ordinária
Seu sobrinho Sérgio vai providenciar
Um móvel anatomicamente preparado
Para a mulher sem pecado
Para que nenhuma Donna mexa-se
Além do que o casório comporta
Além do que o costume agüenta
Além do que o ouvido tolera
Além do que a letra fixa
Mas para além do pudor ou sua ausência
A letra de Nelson fica
A cadeira de Sérgio não




Poltrona Donna - Gaetano Pesce


quarta-feira, 2 de março de 2011

Um Nome para o Pai


Goya, Saturno devorando su hijo



 

Recuava horrorizado diante do vazio que lhe era oferecido. Do refluxo de todos os erros, recolhia os fragmentos, as seqüelas, parcelas de uma vida levada sem projetos. Tudo aconteceu. Respirava entre fumaça, tabagista, ressentia dos seus vícios. Homem, ressentia dos seus erros: - humano, demasiado humano. Se sentia apenas sobra, resto da operação da biologia, da economia, da psicanálise, aturdido se olhava e nada via. O tal objeto a tão caro a Lacan, encarnava-o, objeto caído, dejeto de 68, resto do discurso capitalista que mandava gozar. Eternamente submetido novo escravo, velho serviçal de um gozo que dele escarnecia, deixando-o sem lugar. Não há lugar, o caminho do inferno está pavimentado pelas boas intenções. Não tinha boas intenções, apenas intenções intestinas. Sabia há muito tempo que não era causa de si mesmo, já aprendera, não era causa sui, não é o bastante ser apenas isto, ser causa para si mesmo. Já disse, uma biologia, uma economia, e a sua total insensibilidade para com o que é verdadeiramente um projeto, lhe conduziram a se sentir como agora sentia, era apenas um resto. Um resto ululante que tentava sua publixação. Ou ainda mais verdadeiramente se sentia um nada, sem ler Augusto dos Anjos ou Pessoa, sabia que era nada, com Lacan, aprendia mais especificamente que era só um resto. Não conseguia se esquivar da influência da sua trajetória, Lacan lhe contara que o pai é só um nome. Nome-do-Pai, cazzo. Não é porque saiu da biologia que se torna Um-pai. Não é o espermatozóide que funda um pai, meu Deus, como sabia disto. Se sentia daquele modo como apenas aquilo que se perpetua como nome, e também sem nome, inominável. O inominável era exatamente aquilo que era forçado a passar e que não sabia dizer. O que transmitiria? O que recebera como herança? O dito de Goete nestes casos parecia ter ressonâncias nefastas: aquilo que recebeste como herança, conquista-o para fazê-lo seu. Meu Deus, aflito se perguntava: - o que é seu, o que é verdadeiramente seu?



quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Pingou uma palavra










Uma palavra caiu do teto e escorreu pelo ventilador
feito lágrima em dia de aniversário
poça de não seis
pupila sem menina nos olhos
encanamento entupido que transborda
palavrões e preces
santos beijados viram a face
calçadas portuguesas de beira de praia
que os coqueiros roubam
e levam pras minas que jazem absolutas
subrepticiamente escondidas num silêncio de estalactite
mais uma gota
suco de sentimento de corpo
carne sensível
tolices, tolices, fragmentos do que não volta mais
é só mais uma data
dia como outro qualquer
dia como, dia me come
noite de carpideira
onde a palavra pingou
no meio do olho
no meio do corpo
no meio da carne
nada mais
nada menos
é só um dia qualquer
querelancia de abandonado
não há nada a fazer
Heideger já havia advertido
parido, cuspido
o (i)mundo nú
te espera
banguelo
careca
sua dependência
é patética
pode chorar
e deixar todas as palavras que caem do teto caírem
pôe um balde debaixo
para que não escorram pelo piso
e encharquem as escadas
que te levarão de novo
ao seu aniquilante nada
que já estava antes
e permanecera depois
deixe as palavras pingarem
você não criou nenhum neologismo
tudo isto já estava antes de você
você não é tão criativo quanto um psicótico
que inventa aquilo que nunca foi dito
o máximo que você consegue é descobrir
e nesse momento descobre
que as palavras pingam
e uma delas caiu no seu olho
e fez você chorar


 
 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

E se os olhos virem e o coração não sentir?











O que o olho não vê, não vê e pronto
e não tem órgão nenhum pra sentir nada
o que não foi visto, não ocorreu
e se ocorreu, ocorreu sem testemunha
dolo ou culpa?
como saber?
até porque o único órgão que pode ver é o olho
coração foi feito pra bater
coração já foi dito é cego
se ele não é cego, suas manifestações são
cego de amor dizem
pra que buscar encontrar com os olhos
o que o coração não quer saber
sabido é o Win Wenders
que diz que o que está tão longe pode estar tão perto
mas o esperto e seu contrário também sabem
que o que está longe dos olhos
fica também longe do coração
se ele sente ou não
é um outro poema





segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Aniversário não









Era fato sabido que ele não gostava de aniversários. O dela o rondava há uma semana, momento delicado, ele acreditava que até aquela data já teria ido até aonde haviam morado e retirado o resto de suas coisas. Seria a vez dele de ser Katrina, sua ida até o apartamento tiraria coisas do lugar. Quando ele saísse, pareceria que um furação inundou de novo New Orleans. Espaços ficariam vazios, objetos seriam retirados, desarranjo, arranjo. Não é exatamente o tipo de coisa que ele gostaria de fazer em um dia de aniversário. Aliás, ela sabia que de certo modo ele não gostaria de fazer isto de jeito nenhum. Mas foram e se conduziram até este ponto. Já há alguns meses suas escovas de dentes não se olhavam mais e seu paletó não enlaçava mais o vestido dela, os sapatos deles também não se bicavam. Já não misturavam mais o cheiro na cama, nem se encontravam mais nos lençóis os pelos dele, ele igualmente não mais viu os rituais matinais de cremes da mulher. As coxas não guardaram-se umas entre as outras antes de dormir. Não se sentou mais na cabeceira da mesa. Tantas coisas mudaram, passou a usar óculos, aprendeu a lavar roupas, tornou-se quase um obsessivo ao ter que se atentar para uma organização que nunca teve. Foi manquetulando, claudicante tendo que achar lugar. Queixou-se tanto disto. Dar Adeus era encontrar um terremoto, um maremoto, uma tsunami, o caos, era encontrar as revelações estrondosas da natureza. A outra face do amor é muito turbulenta. Pelos marcos da vida iam e eram levados. Existem pelo caminho tantas ante-salas do inferno, portais que se atravessa sem ver. Dizem que antes do aniversário, imediatamente antes, existe um tal inferno astral. Ele na verdade não sabia porque não gostava de aniversários, talvez alguma expectativa infantil frustrada, provavelmente uma decepção que de algum modo foi necessário recalcar. Talvez em algum de seus aniversários ficou esperando alguém que não apareceu, que não se fez presente. Vida besta. Ele pensava; como a gente carrega coisas estranhas não? Algumas a gente escolhe, outras nos são dadas, existem ainda aquelas que são enfiadas goela abaixo. Tanta coisa pra engolir. Vida besta, homem besta, mulher besta. É a própria besta que toma conta do inferno. Para se acalmar ele dizia: aquieta-te, o inferno passará, para todos nós, o inferno passará. O sol voltará a brilhar, o céu permanecerá sem nuvens. As turbulências cessarão, dois vôo 447 não caem no mesmo oceano. Muitas pessoas naquele dia manifestariam o afeto que tem por ela. Que ela se deixasse abraçar, que não carregasse como ele, aqueles estranhos afetos que nem ele sabia bem como explicar.




sábado, 15 de janeiro de 2011

Estamira, tu não me viste queimando?












De repente as caixas foram surgindo, sutis, e os objetos foram sumindo, de forma igualmente sutil. Envelopes, sacos plásticos, caixas de tamanho diverso iam engolindo a rotina que se espraiava pelos guarda roupas e prateleiras. A decoração que se encontrava pendurada na parede e as cortinas foram as últimas a sair. Antes delas, copos, pratos e panelas já não se encontravam mais. Os objetos da dispensa dispensaram-se uns aos outros. As roupas sujas foram todas lavadas. A mesa foi a primeira a ir. Ela não foi em caixa, suponho. Apenas chegou-se e ela não se encontrava mais, móvel imóvel, não se sabe quantas pernas a levaram, provavelmente quatro. Para mesas grandes gasta-se ao menos duas pernas ao quadrado para carregá-las. De toda forma, ela não havia saído dali sozinha, menos ainda numa caixa. As caixas comportavam os objetos menores do dia-a-dia. Nas caixas ia o cotidiano pequeno. Custou a perceber a ausência dos objetos, mas de repente viu-se forçado a concluir, os objetos não se dissolviam no ar, nem haviam seus estilhaços pelo chão, não se tratava de nenhuma catástrofe, era apenas mudança. Amores novos e velhos, pura repetição, exigiam a presença das caixas para novas mudanças. Para muito além das caixas, coisas miúdas o atormentavam, como afinal alojar e desalojar as pequenas partes daquilo que persiste em dia e dia? Como se dar conta dos novos espaços? O que fazer diante do vácuo causado pela ausência dos objetos da rotina? Toda esta sorte de ignorância haveria de ser superada, pois todos os objetos de fato importantes deveriam ser carregados, aqueles que não, que fossem substituídos. Haviam sempre objetos que não deveriam ir mais, que deveriam ficar, ser dissolvidos. Parte destes objetos era apenas papel, preto no branco. O documento que não documenta mais por si só deveria ser dilacerado, volume sem sentido, dejeto de destino certo que se rasga no lixo. Estamira advertira que lixo é resto e descuido. Ela apenas não sabe, Estamira que estava no começo de tudo (palavras dela), que parte do lixo é afeto que não encontra mais lugar. No lixo Estamira há também muita papelada, documento, registro, afetos regidos por palavras, papel atestando existência, papel que amarela no tempo. Estamira minha querida além de todo o descuido e o resto existe tanta coisa mais no lixo. Existem tantos corações rasgados, segredos inenarráveis mofados, testemunhos apócrifos, confissões nonsense, delírios celotípicos virulentos, culpas com bolor e muito odor. Estamira foi você que me advertiu que todo mundo era escravo disfarçado de liberto, não venha me dizer ainda que achava que o lixo queimava apenas por causa do chorume!