segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Aniversário não









Era fato sabido que ele não gostava de aniversários. O dela o rondava há uma semana, momento delicado, ele acreditava que até aquela data já teria ido até aonde haviam morado e retirado o resto de suas coisas. Seria a vez dele de ser Katrina, sua ida até o apartamento tiraria coisas do lugar. Quando ele saísse, pareceria que um furação inundou de novo New Orleans. Espaços ficariam vazios, objetos seriam retirados, desarranjo, arranjo. Não é exatamente o tipo de coisa que ele gostaria de fazer em um dia de aniversário. Aliás, ela sabia que de certo modo ele não gostaria de fazer isto de jeito nenhum. Mas foram e se conduziram até este ponto. Já há alguns meses suas escovas de dentes não se olhavam mais e seu paletó não enlaçava mais o vestido dela, os sapatos deles também não se bicavam. Já não misturavam mais o cheiro na cama, nem se encontravam mais nos lençóis os pelos dele, ele igualmente não mais viu os rituais matinais de cremes da mulher. As coxas não guardaram-se umas entre as outras antes de dormir. Não se sentou mais na cabeceira da mesa. Tantas coisas mudaram, passou a usar óculos, aprendeu a lavar roupas, tornou-se quase um obsessivo ao ter que se atentar para uma organização que nunca teve. Foi manquetulando, claudicante tendo que achar lugar. Queixou-se tanto disto. Dar Adeus era encontrar um terremoto, um maremoto, uma tsunami, o caos, era encontrar as revelações estrondosas da natureza. A outra face do amor é muito turbulenta. Pelos marcos da vida iam e eram levados. Existem pelo caminho tantas ante-salas do inferno, portais que se atravessa sem ver. Dizem que antes do aniversário, imediatamente antes, existe um tal inferno astral. Ele na verdade não sabia porque não gostava de aniversários, talvez alguma expectativa infantil frustrada, provavelmente uma decepção que de algum modo foi necessário recalcar. Talvez em algum de seus aniversários ficou esperando alguém que não apareceu, que não se fez presente. Vida besta. Ele pensava; como a gente carrega coisas estranhas não? Algumas a gente escolhe, outras nos são dadas, existem ainda aquelas que são enfiadas goela abaixo. Tanta coisa pra engolir. Vida besta, homem besta, mulher besta. É a própria besta que toma conta do inferno. Para se acalmar ele dizia: aquieta-te, o inferno passará, para todos nós, o inferno passará. O sol voltará a brilhar, o céu permanecerá sem nuvens. As turbulências cessarão, dois vôo 447 não caem no mesmo oceano. Muitas pessoas naquele dia manifestariam o afeto que tem por ela. Que ela se deixasse abraçar, que não carregasse como ele, aqueles estranhos afetos que nem ele sabia bem como explicar.




sábado, 15 de janeiro de 2011

Estamira, tu não me viste queimando?












De repente as caixas foram surgindo, sutis, e os objetos foram sumindo, de forma igualmente sutil. Envelopes, sacos plásticos, caixas de tamanho diverso iam engolindo a rotina que se espraiava pelos guarda roupas e prateleiras. A decoração que se encontrava pendurada na parede e as cortinas foram as últimas a sair. Antes delas, copos, pratos e panelas já não se encontravam mais. Os objetos da dispensa dispensaram-se uns aos outros. As roupas sujas foram todas lavadas. A mesa foi a primeira a ir. Ela não foi em caixa, suponho. Apenas chegou-se e ela não se encontrava mais, móvel imóvel, não se sabe quantas pernas a levaram, provavelmente quatro. Para mesas grandes gasta-se ao menos duas pernas ao quadrado para carregá-las. De toda forma, ela não havia saído dali sozinha, menos ainda numa caixa. As caixas comportavam os objetos menores do dia-a-dia. Nas caixas ia o cotidiano pequeno. Custou a perceber a ausência dos objetos, mas de repente viu-se forçado a concluir, os objetos não se dissolviam no ar, nem haviam seus estilhaços pelo chão, não se tratava de nenhuma catástrofe, era apenas mudança. Amores novos e velhos, pura repetição, exigiam a presença das caixas para novas mudanças. Para muito além das caixas, coisas miúdas o atormentavam, como afinal alojar e desalojar as pequenas partes daquilo que persiste em dia e dia? Como se dar conta dos novos espaços? O que fazer diante do vácuo causado pela ausência dos objetos da rotina? Toda esta sorte de ignorância haveria de ser superada, pois todos os objetos de fato importantes deveriam ser carregados, aqueles que não, que fossem substituídos. Haviam sempre objetos que não deveriam ir mais, que deveriam ficar, ser dissolvidos. Parte destes objetos era apenas papel, preto no branco. O documento que não documenta mais por si só deveria ser dilacerado, volume sem sentido, dejeto de destino certo que se rasga no lixo. Estamira advertira que lixo é resto e descuido. Ela apenas não sabe, Estamira que estava no começo de tudo (palavras dela), que parte do lixo é afeto que não encontra mais lugar. No lixo Estamira há também muita papelada, documento, registro, afetos regidos por palavras, papel atestando existência, papel que amarela no tempo. Estamira minha querida além de todo o descuido e o resto existe tanta coisa mais no lixo. Existem tantos corações rasgados, segredos inenarráveis mofados, testemunhos apócrifos, confissões nonsense, delírios celotípicos virulentos, culpas com bolor e muito odor. Estamira foi você que me advertiu que todo mundo era escravo disfarçado de liberto, não venha me dizer ainda que achava que o lixo queimava apenas por causa do chorume!