quinta-feira, 24 de março de 2011

O tempo era














As fitas do senhor do Bonfim não se romperam ainda



Não sabia se haveria sorte ou azar


Quisera cortar os pulsos


Para que junto com as fitas fossem os afetos


O horóscopo também era sempre muito amigável


Por isto evitava lê-lo


Apenas o espelho não mentia


Porque só ali havia olhos nos olhos


Todos os oráculos


Apenas especulavam


Bolsa de jogos


Purrinha


Apurrinhação


O tempo ampulheta impassível ria


Pequeno homem


Como sofre tão grande com tanto nada?


Búzios, números e pais de santo


Dizem que o tempo será


A verdade na verdade


Habita no passo que está por vir


E não no seu desejo


De escutar palavra bem dita


A verdade qual previsão dirá?


O tempo era, já disse James


Por que você não escuta isso?


Por que sofre tanto com este tempo que já não é mais?


A verdade está no por vir


Quando as fitas rasgarem


Não se preocupe com os presságios


É apenas um pano que se esgarçou

segunda-feira, 14 de março de 2011

Entre dois Rodrigues

cadeira de Sergio Rodrigues




Uma mulher disse que mulheres casadas tem amantes
Falou de coitos ocultos às segundas-feiras
Os motéis lotam no horário do almoço
As mulheres casadas tem amantes! Meu Deus!
Nunca imaginou isto
Fazem-no para manter o casamento!
Nelson ruborizado treme na cova
Conversas de não sei quem’s
Os ossos de Nelson reviram no sepulcro
Só as cadeiras do sobrinho poderiam salvar a honra da família
Os móveis não eram despudorados
Os móveis tinham classe
Só o tio não
(para poder pensar e escrever aquelas coisas)
Ele deveria tê-la amarrado na cama
Talvez assim não ficasse com dúvidas
Ele achava que devia mudar tudo
De chave, de caminho e de vagina
Talvez assim achasse um lugar só de cafuné
Outro diz
Quando a mulher recusa o homem
É porque existe outrem
Meu Deus, meu Deus!
Por que será que Nelson treme?
Porra Nelson, para de tremer foi você que disse
Que ela era bonitinha mas ordinária
Seu sobrinho Sérgio vai providenciar
Um móvel anatomicamente preparado
Para a mulher sem pecado
Para que nenhuma Donna mexa-se
Além do que o casório comporta
Além do que o costume agüenta
Além do que o ouvido tolera
Além do que a letra fixa
Mas para além do pudor ou sua ausência
A letra de Nelson fica
A cadeira de Sérgio não




Poltrona Donna - Gaetano Pesce


quarta-feira, 2 de março de 2011

Um Nome para o Pai


Goya, Saturno devorando su hijo



 

Recuava horrorizado diante do vazio que lhe era oferecido. Do refluxo de todos os erros, recolhia os fragmentos, as seqüelas, parcelas de uma vida levada sem projetos. Tudo aconteceu. Respirava entre fumaça, tabagista, ressentia dos seus vícios. Homem, ressentia dos seus erros: - humano, demasiado humano. Se sentia apenas sobra, resto da operação da biologia, da economia, da psicanálise, aturdido se olhava e nada via. O tal objeto a tão caro a Lacan, encarnava-o, objeto caído, dejeto de 68, resto do discurso capitalista que mandava gozar. Eternamente submetido novo escravo, velho serviçal de um gozo que dele escarnecia, deixando-o sem lugar. Não há lugar, o caminho do inferno está pavimentado pelas boas intenções. Não tinha boas intenções, apenas intenções intestinas. Sabia há muito tempo que não era causa de si mesmo, já aprendera, não era causa sui, não é o bastante ser apenas isto, ser causa para si mesmo. Já disse, uma biologia, uma economia, e a sua total insensibilidade para com o que é verdadeiramente um projeto, lhe conduziram a se sentir como agora sentia, era apenas um resto. Um resto ululante que tentava sua publixação. Ou ainda mais verdadeiramente se sentia um nada, sem ler Augusto dos Anjos ou Pessoa, sabia que era nada, com Lacan, aprendia mais especificamente que era só um resto. Não conseguia se esquivar da influência da sua trajetória, Lacan lhe contara que o pai é só um nome. Nome-do-Pai, cazzo. Não é porque saiu da biologia que se torna Um-pai. Não é o espermatozóide que funda um pai, meu Deus, como sabia disto. Se sentia daquele modo como apenas aquilo que se perpetua como nome, e também sem nome, inominável. O inominável era exatamente aquilo que era forçado a passar e que não sabia dizer. O que transmitiria? O que recebera como herança? O dito de Goete nestes casos parecia ter ressonâncias nefastas: aquilo que recebeste como herança, conquista-o para fazê-lo seu. Meu Deus, aflito se perguntava: - o que é seu, o que é verdadeiramente seu?