quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Lapso temporal da hemorragia






Sentiu-se como que se estivesse dando ou tomando uma facada (como se essa alteridade fosse possível). A punhalada é um baque duro, quente, angustiante, logo depois dela, o ar se torna escasso, a boca seca no mesmo instante em que a vida líquida se esvai. Quantas e quantas vezes viu isto em sua existência, tendo um pai açougueiro foram incontáveis as vezes que viu o sangue, que tanto teme a luz, escorrer pelo chão. No encontro com a morte, o animal se agita, o líquido é vermelho, quente e espumante, quantas vezes o viu vazar e escorrer no meio da terra, no meio do esterco. O líquido é espesso e não se entranha completamente no solo, é grosso, mesmo as pelotas coaguladas que os cães comem costumam deixar manchas que não se apagam facilmente. Lembrava-se de encostar o pé ou a mão nos corpos dos animais. Mesmo sobre o corpo do animal morto paira algum respeito, o destrinchador desossa com técnica, até na morte o corpo deve apresentar utilidade. Lembrava-se contudo de magarefes que chutavam o cadáver que já se encontrava estirado. Estas cenas porém não se restringiam em sua lembrança apenas aos animais, já vira nas telas homens tratarem outros homens assim. Já havia visto alguém raivoso chutar o corpo, esfaquear ou balear o morto, judiar da matéria que já estava inerte. Percebia como havia ali raiva e desconsideração pelo corpo do outro, que assim tratado metamorfoseava-se rapidamente só em corpo, não mais outro, apenas corpo. O corpo é o lugar onde pode estar a vida, o anima, o sopro, o calor, mas o corpo do outro pode ser também o lugar do estranhamento, da dúvida, do choque, da raiva, da alteridade que se quer apagar. Quando o intercâmbio com o outro se torna impossível ele pode ser transformado em alguma coisa assim, corpo sem alma, coisa, reles rês, reles coisa, sem afeto, objeto abjeto. Apenas mais um dejeto no mundo onde tudo e nada acontece. É só uma vida, grão de areia que da terra veio e para ela coagulado retornará. Vida líquida frágil que tanto ama quanto teme a luz.