quinta-feira, 28 de abril de 2011

Papo de buteco








E o homem só começou a falar de suas mazelas
Clamou das ranhetas que a vida lhe fez passar
As rugas no entorno de seus olhos
Mostravam que ele não mentia
Nem mesmo exagerava
Contou dos submundos que foi
Falou das drogas que o consumiram
Reclamou das contas
Queixou-se dos parcos recursos
Disse o que faria se ganhasse um milhão
Mas voltou ao mundo real e continuou o relato de suas expiações
Dissecou alguns detalhes mórbidos das noites insones
Lembrou do cheiro do enxofre
Por um momento apenas seu olho brilhou
Foi quando falou que viu a ex-mulher
Ele a vira há dois dias atrás
Depois de sete anos
Fora a primeira vez que a vira
Tentou pensar na sorte ou no azar
Fingiu que não a viu
Mas as costas, os cabelos e os pés não o deixavam se enganar
Olhou para trás para conferir
O que ela faria ali?
Teria provocado um acaso para vê-lo?
Ele não precisava perguntar para si mesmo se ainda a amava
Ele sabia a resposta
A dúvida cruel
Era o porque dela ali
Por que ela teria vindo de tão longe para buscar um pão?
É claro que ele sentia falta dela
Ele já havia falado da solidão
E de como ela é sem remédio
Seu imaginário voou longe tentando achar aquela resposta
Ele saiu triste com suas rugas
E em seus passos magros
Continuou caminhando no fio de sua solidão
Em meio a suas tormentas
Sorvia goles
Buscando companhia, alívio, quietude
Tagarelava etílico
Suas ruminações de homem ordinário
E as dores que lhe carcomiam por dentro


p.s. seguramente ele não conhecia a letra daquela música que fala
que é desconcertante rever o grande amor












terça-feira, 19 de abril de 2011

O pouco de silêncio da noite






 




A televisão falará a noite inteira sem que eu a escute
Contará todas as fanfarronices que a mídia é capaz de produzir
Continuarei sozinho não escutando tudo aquilo
Pois por um instante durmo
Eventualmente contudo uma insônia maldosa me cutuca pelas madrugadas
Ela fica me perguntando sobre o que eu vou fazer
Ela é persistente
Pergunta sem dó
Parece propaganda; - o que queres? O que queres?
Eu não sei o que dizer a ela
Apenas acompanho o movimento dos filmes nacionais repetidos
Que migram para os filmes estadunidenses escaldados
Depois surgem desenhos
Estranho, desenhos a esta hora da madrugada não?
Devem ser os pacotes que eles compram e não sabem aonde enfiam
Logo depois os telecursos para os que tropeçaram na escola
Depois jornal rural
Jornal de rede local
Jornal de rede nacional
E a vida amanhece alheia a minha insônia
E não me pergunta nada
A não ser apenas a hora que vou acordar
Os pardais e os movimentos a rua me avisam
Que mesmo que a paz não tenha me chegado naquela noite
Dia se avizinha
O despertador do telefone com valsa me avisa
Calça tua armadura
Vai-te
Uma nova batalha te espera
Tira tuas botas da lama
Veste sua farda de todo dia
Tem dia que a noite é foda











segunda-feira, 11 de abril de 2011

Fala de soldado do tráfico (dois discursos sobre uma só questão)










Oh Zé, aquele cara falou   (escuta)
Que o cara de óculos tá te escoltando (tem gente de olho em você)
Falou que é pra ocê piá lá na fita   (querendo que vá aonde deixou pendências)
Porque senão ele vai querer resolver aquela treta  (para resolvê-las)
É enfumaçando ocê! (para seu próprio bem)
Leva a mal não         (me desculpe)
Mas esse negócio de ficar pagando de doido (mas sua negligência)
Não vai resolver a parada   (não solucionará a questão)
Tem que botar a cara Zé!   (honre seus compromissos)
Negócio de pilantragem com bandido cola não 
(sua omissão te custará caro)
Coração de bandido bate é no pé (seus credores não tem piedade de ti)
Bandido tem é sangue no fundo dos olho (e levarão tudo até as últimas conseqüências)
Leva a mal não Zé  (me escuta)
Pra mim não dá nada não (não tenho nada com isto)
Eu sou colado é no patrão (meus amigos me protegerão)
Num fico na mão do calango não (tenho padrinhos)
Com nóis é só pentada (e posso levar as coisas ao extremo)
Oh Zé cola com os alemão não (não se aproxime dos meus desafetos)
Ocê deixou o patrão aperreado (você incomodou ao meu superior)
Ele falou comigo que tá bolado com ocê (ele ressente de seus atos)
Oh Zé  (escuta)
Faz logo sua correria (resolva sua pendência)
Porque é muita treta (a fila anda)
Tem um microondas lá na quebrada (a vida é frágil)
Que o patrão usa pra resolver umas questão (o tempo urge)
Eu acho que ocê não vai querer conhecer não (aqui se faz, aqui se paga)
E eu já te falei (escuta)
Dentro da favela a lei é outra (o mundo é muito desigual)
Quem manda lá não é os homi não (e quando a justiça não resolve tudo)
Quem manda lá é nóis  (alguém há de resolver)
Oh Zé (escuta)
Aquele cara falou que cuspiu no chão (existe uma demanda contra você)
É procê piar lá antes que seque (é melhor que a solucione)
Oh Zé (escuta)
O mundão (a vida é dura)
É cão (mas é aqui que se resolve)
Já é? (entendeste?)

terça-feira, 5 de abril de 2011

Dicionário para dúvidas em geral












Para corrigir alguma coisa da ortografa bati palavras em um Microsoft Word
Para fazer uma pesquisa sobre tudo bati no Google
Mas aonde faço a busca ‘como ser um homem perfeito’?
Aonde digito dicas para ‘como ser pai’?
Haverá algo sobre ‘o bom chefe’? Ou ‘como manter um casamento’?
Há algo sobre o déspota esclarecido?
Alguém saberá me responder isto?
Aonde vou encontrar as respostas para minhas questões sem resposta?
Algum beócio de envergadura dirá: faça assim, faça assado!
Mas ainda existe também o bem intencionado que me dirá sempre: não faça nada disto!
É risível, é ridículo, é oco
É só um buraco
A minha honestidade tacanha
Que me manda para todos os furos do mundo me obriga a dizer:
Sua receita não se aplica
Meus amigos com suas idéias mirabolantes
Perecem no mesmo limbo de dúvidas
Porque se por um lado todos tem tantas respostas geniais para me dar acerca dos meus problemas
Cada qual padece igualmente de interrogações tão estomacais quanto as minhas
Você magnânimo olha minhas questões
E diz: ora, ora, ora!
Você sapiente me recomenda todos os princípios daquilo que não aplica
Você não passa de um grande filho da puta
Que me alerta para fazer o que você diz
Mas não fazer o que você faz





segunda-feira, 4 de abril de 2011

Notas sobre homens sós ou o porque do casamento feliz





Te amo porque você me deixa
Me deixa vagar pelos bares e pelas noites
Me deixa desfrutar o Zoológico das espécies
Botânica de alquimista
Na noite escura surgem todos os ângulos
É possível ver todos os alcoólatras
Todos os toxicômanos, os canabinomanos,
Os cocaínomanos, os noiados
Vespertinos, vesperatos, desesperados, todos
Todos tão solitários
Estes solitários tratam malestares
Tanto de multidão quanto de solidão
Com copo mudo que não pede nada
Com nota encardida de catarro
Com cachimbo fedorento que propaga paranóia
Com insônia inimiga de sol
Remédios com efeitos colaterais
Suspeita de que alguém tudo vê
Será Deus? Ou a polícia? Será minha mulher?
Será meu chefe? Será meu supereu?
Será que o papai imagina isso tudo de mim?
Será que o pecado pode ficar sem confissão?
Há quem diga que não
De qualquer forma era possível amá-la
Porque ela o deixava chafurdar na sua solidão
Era possível odiá-la pelo mesmo motivo
Ele só sabia que quando andava pelas noites e bares
Ganhava a sorte de poder observar tudo
Ganhava igualmente o azar de provar um de cada
Escutar lorotas monotonicas insuportáveis
De novo delírios de ciúmes
De novo papo de futebol
Uma mulher em casa brigaria por outros motivos
Mazelas de ter que conviver todo dia
Canseira de casal
Neura
Moléstia
Molestação
Não me venha novamente com seu rosário
Não me venha novamente com suas lágrimas
Não me venha a uma hora desta discutir a relação
Enquanto encontra coito, a carne é só tesão
Gemidos, sussuros, gritos e silêncio: Pos coitum animal triste
Depois do corpo inerte um chicote sadomasoquista de alma, pergunta: que queres?
Nada! Respondo
Silencioso penso: deve ser por isto que os homens freqüentam os bares
Lá existe só Happy hour
Em casa uma mulher vestida de esfinge não se cala: decifra-me ou eu te devoro!